08/06/2014

Recortes dos dias... silêncios


www.artenocorpo.com



Tenho fome de silêncios.

Vontades de pouco ouvir e nada dizer. 

Só o que baste. 

Nada mais. 

Aconchegar o corpo em mergulho.

Mar. 

Quero o som dos peixes.


05/06/2014

Recortes dos dias... esperas





Lendo Saramago no ponto de ônibus. Pág. 34.
- A senhora viu se o 3 já passou?- pergunta a mocinha magra que acabou se sentar. Leg zebra, sandália barata, unha rosa, pintada em quarto com pouca luz. Cor corajosa. Gosto.
- Faz uns cinco minutos...
- Iiii, danou-se. Agora vai demorar...
Volto à 34.
- É a bíblia?
- Não... é um romance, uma história.
- Minha avó deu de ler a bíblia...Passa o dia lendo. Não gosto de ler... embaralha as vistas.
Sorrio e volto à 34.
- A senhora faz faxina todo dia?
Bem... estou num ponto de ônibus... onde muitas faxineiras passam horas... Minha blusa de seda não significa nada prá ela. Nem minha bolsa, presente caro de uma amiga.
- Não, só às vezes.
- Minha avó também só faz às vezes. Hoje eu vim no lugar dela. Gente velha não dá conta, né? Faxina acaba com a gente. Quantos anos a senhora tem?
- 64
- Putz... é velha mesmo! Mais velha que minha avó

14/05/2014

Recortes dos dias... árvores


Na cidade se perdem os sentidos. 

A cidade tem palavras demais, pessoas viciadas em palavras como se fosse preciso ouvir o

tempo todo suas próprias vozes para para sentir que existem. 

Estou cansada do desmedido falar. 

Da solidão coberta de sons farrapos dos que vivem juntos. 

Quero o silêncio das árvores.

07/05/2014

Recortes dos dias ... passarinhos

 

                        ... passarinhos...
ilustração Bia Porto

Eu estava ali no portão espiando a rua quando a senhorinha com coque de crente e 

vestidinho florido parou e apontou prá dentro do meu quintal:

- Não vai cortar a banana? Tá madurando e passarinho vai comer tudo.

Olhei o cacho e entendi a piação estridente da manhã.

- Vou não. Deixa o passarinho comer. 

- Também gosto mais de passarinho do que de banana.

E foi.

Made by earthworms



Mudamos de casa ontem, as cachorras, as minhocas, o saci e eu. É isso, eu tenho um saci e minhocas. Alguma coisa contra?  Se eu tivesse filmado e postado essa noite na casa nova, ia bombar.  Bem que eu quis organizar a mudança sozinha, mas minha filha me enfiou goela abaixo uma empresa especializada e deu no que deu: sabonetes na geladeira, controle remoto no freezer, maquiagem no pote de ração e uma noite que ficará na história como a noite do “cadê”. E por falar em ração, cadê ela?  
- Cachorras, abanem os rabinhos! Hoje vamos de pizza! Isso se tiver pizzaria aqui por perto e eu descobrir o telefone. Sair de casa como? Cadê as chaves?
Ontem fui dormir super cedo prá organizar tudo hoje durante o dia. Como as cachorras saudavam cada novo som com felizes latidos, antes de um despejo sumário pela vizinhança, achei melhor dormir com elas no tapete do escritório.
O telefone me acordou uns dez minutos depois de ter fechado os olhos. Não achei o interruptor, pisei num bibelô que devo ter derrubado quando puxei as cobertas, cortei o dedão do pé e quando achei o telefone, tinha parado de tocar. A caixinha de curativos só achei depois de procurar duas horas, quando fui tomar um suco: na gaveta de verduras atrás dos sabonetes. Nessas duas horas achei muitas outras coisas, pois só encontramos uma coisa quando procuramos outra, não é?
Mas, enfim, o que eu queria não era mudar? E então tudo que me rodeava mudou junto. E agora, o telefone tocando, raios, mas cadê ele?  Rarrá, achei!
Ela de novo. Quem mais me ligaria antes das oito da manhã?
-  Estou no chuveiro! Depois eu ligo! -  atendo, resmungo e me viro no tapete.
- Mamãe, esse telefone é fixo e está no escritório. Ou será que você instalou uma ducha na estante?
-  Vou anotar essa ideia, assim que achar uma caneta.  Mas o que você quer antes das oito? Vingança por todas as vezes que tirei você da cama? 
- Saber como está a casa nova, claro! O que mais poderia ser? Ontem você não atendeu.
 - Brinquei de caça ao tesouro a noite toda. Por tesouro entenda: curativo, tesoura, livro, chaves, sabonete... O saci não deu trégua.
- Mãe, curativo prá que? E tesoura? E esse saci? Você pirou?
-  Fiz um cortinho no dedão do pé. A tesoura, que eu não achei ainda, é para eu cortar os muitos apegos que ainda me prendem à casa antiga. Mudar é bom, mas envolve rompimentos, cortes, perdas, saudades....  E o saci é o mesmo, aquele das histórias que eu te contava quando você era pequena, que vive escondendo tudo, inclusive ele mesmo. Vou ignorar a quarta pergunta.
- Mãe, dá prá falar sério uma vez na vida?  Quero saber de coisas reais, como a água da casa, energia elétrica, enfim, se tudo funciona. Essa casa não é nova! E você me fala de apegos... sacis... 
-  Coisas reais? Vamos lá... Você sabe de onde vem sua água? A daqui eu já sei. É um blended de vários rios, inclusive uns de Minas Gerais!  Juntam todos em canos, passam pela Serra da Cantareira, tratam, e pronto, está aqui. Caso um terremoto destrua a Cantareira, tenho uma reserva para quinze dias. Os carregadores e a geladeira estão plugadas em milhares de quilômetros de linhas de transmissão, muitas usinas, florestas inundadas e maracutaias em licitações. E meu lixo vai ser exportado prá outra cidade já que em São Paulo não tem mais lugar para um cisco. Os recicláveis vão para uma cooperativa e os restos de alimentos vão para as minhocas. Respostas certas? Posso desligar? Quero dormir até meio dia. Paguei trinta anos dessa fraude chamada Previdência prá isso.
- Santa Benedita! Minhocas! Espera... aquelas caixinhas que você sempre tem na área de serviço de onde tira aquele adubo estão cheias de mi-nho-cas? Cruzes! Porque você nunca me disse isso?
- Você nunca perguntou! E elas são ótimas!  Nunca ficam fora da casinha, transformam as sobras de comida em húmus, sem cheiro e sem barulho, e não me telefonam antes das oito! Porque você acha que as verdurinhas que levo prá você são tão bonitas?  Húmus, bebê. Nunca prestou atenção na etiquetinha que diz:  made by earthworms?
-. Earthworms... meu deus...minhocas! Não me toquei. Mas porque em inglês? Porque não em português?
- Oras... no mundo do delete, layout, word, backup, download... porque não earthworms? Não é chique? Ninguém torce o nariz para earthworms, querida, nem você!  Mas fique tranquila, você não é a única que aceita tudo que tenha uma etiqueta em inglês. E agora, me deixe dormir. Ligue terça ou quarta.
Com as costas pinicando no tapete e duas cachorras enroscadas nos meus pés, me pergunto em que momento da vida descartamos as nossas fantasias e ligamos a vida no piloto automático. Porque, ao invés de tentar refazer o trajeto de uma tesoura perdida não posso simplesmente dizer “foi o saci”? Porque não parece normal assistir ao milagre dos ciclos da vida se renovando numa caixa com earthworms, digo, minhocas? Por que complicamos coisas simples e convivemos com coisas complexas como a água da torneira sem perceber a complexidade? Ela sequer perguntou a única coisa que realmente deveria interessar... 
O telefone de novo.
- Vó? Ouvi minha mãe falando com você. Minhocas fazem terra com restinhos de lanche também?
-  E uma terrinha muito boa! Daquela que hortelã adora! Tomaremos chá gelado made by  earthworms!
- Legal! Vou levar as cascas das frutas prá elas! O saci gostou da casa nova? E você, está feliz?

Recortes dos dias... Estações

 
Ilustração de Chi Chi Huang

Quando o tempo se faz inverno e o corpo diz basta à lida, fico urgente de gravetos e de 

soprar devagar as brasas. Na explosão da chama, minha alma volta inteira e justa ao 

corpo. Estou aqui e em mim. 

E se o sol torra a terra e o corpo diz basta à lida, fico urgente de remar, remar. E 

quando mergulho na imensidão de espuma, minha alma volta inteira e justa ao corpo. 

Estou aqui e em mim.

Recortes dos dias ... Marte


 
Ilustração Catarina Sobral

Na agenda paralela, a da rede social, estava lá: ver Marte. Ia estar pertinho, no meio do 

céu, no meio da noite. Bem, se eu estivesse no meio do quintal dava prá ver. Claro que eu 

podia só ir lá fora, olhar prá cima e pronto, Marte estaria registrado em mim. Mas eu quis 

fotografar prá postar e dizer prá todo mundo: Vejam, eu vi Marte! Merda de ego. E aí 

começou: um edredron prá me deitar na grama? Hum.... todos limpos. Grama com 

Malathion da equipe da dengue que entrou aqui com um canhão de veneno. Um 

lençolzinho, mais fácil de lavar? E se tiver caramujos na grama? Não ia gostar de um "crec"

nas costas e uma meleca no lençol. Cadeira... melhor cadeira. Não dou conta de virar o 

pescoço prá cima por mais de um minuto. E outra cadeira no colo, prá servir de tripé. 

Marte é longe... Difícil é respirar, pois a cadeira de cima respira junto, a máquina vai no 

embalo, Marte treme, a foto desfoca, a cadeira cai, caio eu na grama sob Marte. E então 

me pego assim pensando em todo sistema: Marte, eu, Terra, terra, grama, universo. E me 

esbaldo na relatividade. Somos todos átomos. Somos todos grama. Somos todos Marte. 

Somos todos caramujos. É tudo uma coisa só.