05/12/2011

Vovó Aranha


Agenda para o primeiro  dia de aposentada: enrolar na cama, acordar às 12:00, passar o dia de camiseta e brincar com as cachorras. Almoçar omelete e jantar pizza. Ver novela, todas. Sem internet. Sem arrumações.  Bom, né? 
Mas não foi exatamente assim. Dessa adorável programação não cumpri nem  o primeiro item: dormir até tarde.
Às oito, o telefone.
- Vó, posso fazer minha festa de aniversário na sua casa? Minha mãe disse que aqui não cabe.
- Chama sua mãe.
- Bom dia, querida! Que bom que você concordou! Sabe, aqui é pequeno, as crianças gritam, o prédio é muito chato... – diz uma voz que conheço bem, num tom que também conheço. 
- Não concordei ainda. Vamos lá: quantas crianças e quantos adultos?
- Não sei... uns 10 ou 20.  É só a galerinha da classe.  
- Então anote aí:  crachá nas crianças com nome, telefone e possíveis alergias, certo?  Pais e mães não bebem, ok?  Final às 22 horas. Nada descartável. Use os pratinhos e copos das últimas festas que, por sinal, são lindos. Viu, valeu a pena investir nos duráveis!  Menos gastos e menos lixo. Nada de trecos de isopor. Tudo com seu cartão!
- É justo. Mas você providencia uma bebidinha para mães? Algo leve... um vinho?
Finjo que não escutei. Tudo o que não preciso é de mães alegrinhas esmagando brigadeiros nos sofás. Mas, bem no fundo, estou adorando a idéia. Um dia de bagunça não pode ser tão ruim.
 O aniversariante volta ao telefone:
- Vó, tem que ter fantasia. Todo mundo, até mães e pais. Não entra sem, tá?  Você também.  
- Sua mãe vem fantasiada de mágica? É que ela adora desaparecer no meio do circo! E eu não tenho que me fantasiar para entrar onde já estou.
- Minha mãe nem vai. Vou com a Camila e com a mãe dela.  Elas vão de fadas.  Vai ser chato só você sem fantasia.  Pô, vó... todo mundo é todo mundo...
Pensando bem, já que a mãe do pimpolho vai pagar tudo, e com  certeza sumir do mapa, não custa nada eu usar uma fantasia.
 Claro que minha agenda de paz celestial virou um tour infernal por locadoras de fantasias em busca de algo tamanho G que não fosse roupa de fantasma.  Por fim, numa lojinha chinesa,  consigo uma  Mulher Aranha GG que, depois de alguns ajustes para não parecer comprada num sex shop, ficou razoável.   
A festa começa na hora prevista e tudo está sob controle. Fadas e ciganas adultas fofocam pelos cantos e os vinte e poucos extraterrestres brincam, dançam, comem.
Eis que o interfone toca! Um atrasado?! Antes que eu diga “pode entrar”  o porteiro grita:
- A senhora precisa vir aqui agora! Está a maior confusão! Tem um monte de gente fantasiada!  Tem até polícia!
Arrasto meu neto prá um canto e fulmino:
- Quantos mais você convidou? Quero números!
- Ninguém... meus  amigos do Facebook... só... uns  500, uns 1000... Juro que....
 Sem raciocinar saio em desabalada carreira e petrifico na guarita do condomínio. Na rua, uma fila dupla dobra a esquina até não sei onde.   Atrapalhadas e festivas,  dezenas de borboletas, batmans, diabinhos, flores, piratas e até um pai-robô e uma mãe  sereia  se acotovelam para entrar. Um guarda de trânsito tenta colocar ordem na bagunça.  Dois policiais (ou estariam fantasiados?!) me cercam e perguntam:
- A festa é da senhora?
-  Não, quer dizer, acho que sim.
- Por favor, queira nos acompanhar-  diz um deles com firmeza,  já me conduzindo para a viatura.
Peço para buscar minha bolsa e deixar alguém responsável pela festa. Ligo para minha filha só para confirmar o que já sabia: fora de área.
São duas horas da madrugada. Estou esperando meu advogado sentada num banco de delegacia.  Ele não entendeu nada quando eu pedi que viesse logo, pois estou vestida de Mulher Aranha e com frio. (A capinha de Batman que arranquei de um menino antes de entrar na viatura só me aquece um braço.)  
A vida começa a ficar divertida.

16/06/2011

Torta de Criptônio


ilustração Bia Porto
      Pois é. Cá estamos, meu neto e eu, lado a lado, cada qual com seu notebook. Ele na tarefa da escola e eu começando um orçamento que preciso entregar ontem. A diferença é um zero: eu sessenta, ele seis.
      Não disfarcei a irritação quando o pai dessa criança a empurrou porta adentro dizendo que era só por algumas horas: ele e a mãe precisavam sair e a babá tinha faltado. Argumentei que adoro meu neto, que gosto muito quando ele fica em casa, mas que hoje preciso trabalhar. Só a porta ouviu meu protesto.  Enfim, estamos aqui e não nego minha felicidade com a coisinha por perto. Começo minha planilha e ao que parece o pimpolho já está envolvido na sua missão.  Fico curiosa para saber que tarefa a escola dá a uma criança de pouco mais de seis anos, mas me calo. Melhor mergulhar nos números.
     - Vó... o que é meio ambiente?
     Pronto... começou. Lá se foi minha planilha...
     - Procura no Google.
     - Já procurei. Tem 60 milhões de resultados. Qual eu copio?
     - Não é para copiar, é para ler, entender e escrever.  Pega o primeiro resultado. Você não trouxe um caderno?
     - Não sei escrever!  Mas sei ler.
     - Mas não escreveu na janelinha do Google?
     - Não, só digitei. Só vou escrever em papel no ano que vem. Você sabe ou não o que é meio ambiente?
    - Sei. – respondo, aflita, o orçamento ainda no primeiro de 50 itens. –  Digita aí que é o planeta inteiro com seus reinos vegetal, animal e mineral.
    - Dá um exemplo. A profa sempre dá e a gente entende melhor.
    - Água e terra são do reino mineral, plantas do reino vegetal, e gente e bichos do animal.- concluo com toda certeza de  uma sábia avó.
    - A água da torneira também é mineral?
    - Claro. Toda água é mineral. Você já viu água vegetal ou animal?
    Ele pensa um pouco. Nasceu depois da invasão do plástico, não conheceu a eficiência dos filtros de barro e ainda não se deu conta de que essa lenda de água “mineral” só serve para vender garrafas plásticas. Mas... não vou falar disso agora. Consigo passar para o item 02 do orçamento.  
    - E o ar? É mineral também?  Não tem cara de vegetal nem de animal.
    Fico confusa. O ar?  Tudo parecia tão simples... E essa agora?  Melhor ligar para a amiga bióloga. Vamos lá...
    - Alô? Edison? A Patrícia está por perto? Não precisa chamar... Só pergunta pra ela se ar é mineral! – falo, esperando uma resposta qualquer, desde que curta e clara.
    Ouço uma conversa entre eles e ela pega o telefone.
   - Na verdade não, pois o ar tem compostos inclusive orgânicos, como gás carbônico, além de oxigênio, nitrogênio, argônio, criptônio, hélio, neônio, e xenônio. Essa classificação de reino mineral, vegetal e animal não é mais usada... as coisas mudam... na abordagem atual são considerados os aspectos geomorfológicos.... troposfera, estratosfera, , termosfera e exosfera ... patati.. patatá...
    Tento anotar o que ela fala, mas me perco e desisto. Ela diz que os reinos agora servem só para seres vivos, que reúnem, por exemplo, espécies e famílias de animais.  Espécie é um conjunto de uma ou mais populações que partilham o mesmo fundo genético e produzem descendentes férteis. Família... não deu tempo de anotar...Mas ela dá um exemplo que entendo, mas não consigo juntar com  tudo que ouvi.
   - Se um tigre cruza com um gato, os filhotes serão estéreis Por isso são de espécies diferentes. Se um viralata cruza com um poodle, os filhotes serão bem feios, mas podem ter descendentes. São, portanto, da mesma espécie.
     Desligo. A idéia de um tigre cruzando com um gato me confunde. Se eu fosse um tigre comeria o gato, mas talvez as coisas tenham mesmo mudado até para os tigres.
    O garotão me olha ansioso pela resposta.
    - Vó, o que é meio ambiente?  Preciso terminar a lição...
    - Não sei mais o que é. Quando a Terra era mais simples e só tinha atmosfera eu sabia..– respondo reticente. – Não sei mais.
    - Ela não explicou? Ficou tanto tempo falando...
    - Não. Ela só disse que as coisas mudam depressa demais e as avós devem preparar bolinhos para o lanche. Quando seu pai voltar pergunta essa coisa de ambiente pra ele. Agora vamos para a cozinha fazer uma torta de criptônio e um suco de mesosfera bem gelado. Depois você vai desligar o computador e ler uma história infantil.  Num livro, claro, e no quarto.

31/01/2011

Você pode falar agora?

     
    Meu primeiro celular pesava um quilo. Ok, menos... mas era enorme! Tocava raramente, mas tinha um lado bom: era impossível perder aquilo na bolsa. Sinal em minha casa só pegava num cantinho da varanda e ainda assim se eu ficasse nas pontas dos pés absolutamente imóvel. Um só movimento e as enormes listras luminosas sumiam do visor e alô?  Eu tinha câimbras se o papo durava, pois não é fácil ficar pétrea como bailarina, segurando com uma das mãos o pilar da varanda e com outra um tijolo mudo.
   Quando a coisa tocava em público, que vergonha! Era como se minha privacidade ficasse pelada entre as pessoas e eu não ia além de sussurrar  “depois eu te ligo” e desligar constrangida, quase pedindo desculpas à platéia.
   Isso não faz tanto tempo assim.  Dez anos? Foi ontem. Na história da humanidade foi há um triz. (Adoro essa palavra “triz”...)
   Agora tenho um celular pequeno que se perde entre batons, canetas, presilhas, aspirinas e papeizinhos na bolsa, serve como telefone, tira fotos, faz contas e me acorda. Tem dois anos e é tão antigo que tenho medo de colocar em cima da mesa num restaurante e os garçons retirarem como resto. Não recebe e mails, não tem GPS, não toca música. Talvez até toque, vá saber... De GPS eu não preciso, pois sempre sei onde estou, mesmo que não queira. E isso também não faz a menor diferença  porque onde quer que eu esteja sou achada:  o pedreiro me acha no  chuveiro, o primo desempregado no meio da novela, o amigo deprimido no meio do almoço. Aliás, nessa de atender a coisa  almoçando, já  atendi o garfo. Verdade.
   Tudo bem,  não estou normal, mas estou me tratando. Não por causa do garfo, pois isso não foi grave, só foi ridículo. Fiz outras coisas ridículas também: deixei gente plantada na minha frente para atender quem estava longe e esqueci qual era o assunto quando desliguei, fiz a fila do caixa esperar enquanto atendia quem na verdade devia esperar, disse que podia falar quando nem queria ouvir.
   Mas o tratamento não envolve o ridículo. A coisa é mais séria. Preciso me livrar de um pesadelo recorrente chamado “obsolescência programada”. Não ter trocado meu celular nesses dois anos é sinal de que estou melhorzinha, acho.
   O pesadelo é assim: eu entro em uma loja e compro o mais moderno dos celulares, bilhões de funções, top dos tops. Quando eu saio da loja ele já está antigo. Volto, compro um mais moderno e quando eu saio da loja ele está obsoleto. Volto, compro outro e vou comprando, outro, outro. Centenas!
   Todos vão ficando antigos cada vez mais depressa. Começo a desconfiar que alguém está por trás disso, alguém que programa essa obsolescência. O último modelo não é o último modelo, é o penúltimo, e estou sendo enganada.    
   O pesadelo continua e vou juntando celulares, celulares, todos inúteis, com suas baterias cheias de venenos. Não sei o que fazer com eles, quero devolvê-los aos seus criadores e não há criadores. Tento muitos 0800, mas nenhum  têm a opção “socorro!”.
   Vão se amontoando, se juntam aos dos vizinhos, se esparramam pelas ruas,  pelas cidades e pelo mundo inteiro. Todos  tocam sem  parar, não  consigo atender. Chamadas perdidas. 
   Não dá mais tempo. Afundamos no lixo.
   Acordo.  Será que dá para dormir mais um pouco?  



Obsolescência programada é o nome dado a vida curta de um bem ou produto projetado de forma que sua durabilidade ou funcionamento se dê apenas por um período reduzido. A obsolescência programada faz parte de um fenômeno industrial e mercadológico surgido nos países capitalistas nas décadas de 1930 e 1940 conhecido como Descartalização. causando grandes danos ao meio ambiente e prejuízos aos consumidores em geral. Faz parte de uma estratégia de mercado que visa garantir um consumo constante através da insatisfação, de forma que os produtos que satisfazem as necessidades daqueles que os compram parem de funcionar tendo que ser obrigatoriamente substituídos de tempos em tempos por mais modernos.