14/05/2014

Recortes dos dias... árvores


Na cidade se perdem os sentidos. 

A cidade tem palavras demais, pessoas viciadas em palavras como se fosse preciso ouvir o

tempo todo suas próprias vozes para para sentir que existem. 

Estou cansada do desmedido falar. 

Da solidão coberta de sons farrapos dos que vivem juntos. 

Quero o silêncio das árvores.

07/05/2014

Recortes dos dias ... passarinhos

 

                        ... passarinhos...
ilustração Bia Porto

Eu estava ali no portão espiando a rua quando a senhorinha com coque de crente e 

vestidinho florido parou e apontou prá dentro do meu quintal:

- Não vai cortar a banana? Tá madurando e passarinho vai comer tudo.

Olhei o cacho e entendi a piação estridente da manhã.

- Vou não. Deixa o passarinho comer. 

- Também gosto mais de passarinho do que de banana.

E foi.

Made by earthworms



Mudamos de casa ontem, as cachorras, as minhocas, o saci e eu. É isso, eu tenho um saci e minhocas. Alguma coisa contra?  Se eu tivesse filmado e postado essa noite na casa nova, ia bombar.  Bem que eu quis organizar a mudança sozinha, mas minha filha me enfiou goela abaixo uma empresa especializada e deu no que deu: sabonetes na geladeira, controle remoto no freezer, maquiagem no pote de ração e uma noite que ficará na história como a noite do “cadê”. E por falar em ração, cadê ela?  
- Cachorras, abanem os rabinhos! Hoje vamos de pizza! Isso se tiver pizzaria aqui por perto e eu descobrir o telefone. Sair de casa como? Cadê as chaves?
Ontem fui dormir super cedo prá organizar tudo hoje durante o dia. Como as cachorras saudavam cada novo som com felizes latidos, antes de um despejo sumário pela vizinhança, achei melhor dormir com elas no tapete do escritório.
O telefone me acordou uns dez minutos depois de ter fechado os olhos. Não achei o interruptor, pisei num bibelô que devo ter derrubado quando puxei as cobertas, cortei o dedão do pé e quando achei o telefone, tinha parado de tocar. A caixinha de curativos só achei depois de procurar duas horas, quando fui tomar um suco: na gaveta de verduras atrás dos sabonetes. Nessas duas horas achei muitas outras coisas, pois só encontramos uma coisa quando procuramos outra, não é?
Mas, enfim, o que eu queria não era mudar? E então tudo que me rodeava mudou junto. E agora, o telefone tocando, raios, mas cadê ele?  Rarrá, achei!
Ela de novo. Quem mais me ligaria antes das oito da manhã?
-  Estou no chuveiro! Depois eu ligo! -  atendo, resmungo e me viro no tapete.
- Mamãe, esse telefone é fixo e está no escritório. Ou será que você instalou uma ducha na estante?
-  Vou anotar essa ideia, assim que achar uma caneta.  Mas o que você quer antes das oito? Vingança por todas as vezes que tirei você da cama? 
- Saber como está a casa nova, claro! O que mais poderia ser? Ontem você não atendeu.
 - Brinquei de caça ao tesouro a noite toda. Por tesouro entenda: curativo, tesoura, livro, chaves, sabonete... O saci não deu trégua.
- Mãe, curativo prá que? E tesoura? E esse saci? Você pirou?
-  Fiz um cortinho no dedão do pé. A tesoura, que eu não achei ainda, é para eu cortar os muitos apegos que ainda me prendem à casa antiga. Mudar é bom, mas envolve rompimentos, cortes, perdas, saudades....  E o saci é o mesmo, aquele das histórias que eu te contava quando você era pequena, que vive escondendo tudo, inclusive ele mesmo. Vou ignorar a quarta pergunta.
- Mãe, dá prá falar sério uma vez na vida?  Quero saber de coisas reais, como a água da casa, energia elétrica, enfim, se tudo funciona. Essa casa não é nova! E você me fala de apegos... sacis... 
-  Coisas reais? Vamos lá... Você sabe de onde vem sua água? A daqui eu já sei. É um blended de vários rios, inclusive uns de Minas Gerais!  Juntam todos em canos, passam pela Serra da Cantareira, tratam, e pronto, está aqui. Caso um terremoto destrua a Cantareira, tenho uma reserva para quinze dias. Os carregadores e a geladeira estão plugadas em milhares de quilômetros de linhas de transmissão, muitas usinas, florestas inundadas e maracutaias em licitações. E meu lixo vai ser exportado prá outra cidade já que em São Paulo não tem mais lugar para um cisco. Os recicláveis vão para uma cooperativa e os restos de alimentos vão para as minhocas. Respostas certas? Posso desligar? Quero dormir até meio dia. Paguei trinta anos dessa fraude chamada Previdência prá isso.
- Santa Benedita! Minhocas! Espera... aquelas caixinhas que você sempre tem na área de serviço de onde tira aquele adubo estão cheias de mi-nho-cas? Cruzes! Porque você nunca me disse isso?
- Você nunca perguntou! E elas são ótimas!  Nunca ficam fora da casinha, transformam as sobras de comida em húmus, sem cheiro e sem barulho, e não me telefonam antes das oito! Porque você acha que as verdurinhas que levo prá você são tão bonitas?  Húmus, bebê. Nunca prestou atenção na etiquetinha que diz:  made by earthworms?
-. Earthworms... meu deus...minhocas! Não me toquei. Mas porque em inglês? Porque não em português?
- Oras... no mundo do delete, layout, word, backup, download... porque não earthworms? Não é chique? Ninguém torce o nariz para earthworms, querida, nem você!  Mas fique tranquila, você não é a única que aceita tudo que tenha uma etiqueta em inglês. E agora, me deixe dormir. Ligue terça ou quarta.
Com as costas pinicando no tapete e duas cachorras enroscadas nos meus pés, me pergunto em que momento da vida descartamos as nossas fantasias e ligamos a vida no piloto automático. Porque, ao invés de tentar refazer o trajeto de uma tesoura perdida não posso simplesmente dizer “foi o saci”? Porque não parece normal assistir ao milagre dos ciclos da vida se renovando numa caixa com earthworms, digo, minhocas? Por que complicamos coisas simples e convivemos com coisas complexas como a água da torneira sem perceber a complexidade? Ela sequer perguntou a única coisa que realmente deveria interessar... 
O telefone de novo.
- Vó? Ouvi minha mãe falando com você. Minhocas fazem terra com restinhos de lanche também?
-  E uma terrinha muito boa! Daquela que hortelã adora! Tomaremos chá gelado made by  earthworms!
- Legal! Vou levar as cascas das frutas prá elas! O saci gostou da casa nova? E você, está feliz?

Recortes dos dias... Estações

 
Ilustração de Chi Chi Huang

Quando o tempo se faz inverno e o corpo diz basta à lida, fico urgente de gravetos e de 

soprar devagar as brasas. Na explosão da chama, minha alma volta inteira e justa ao 

corpo. Estou aqui e em mim. 

E se o sol torra a terra e o corpo diz basta à lida, fico urgente de remar, remar. E 

quando mergulho na imensidão de espuma, minha alma volta inteira e justa ao corpo. 

Estou aqui e em mim.

Recortes dos dias ... Marte


 
Ilustração Catarina Sobral

Na agenda paralela, a da rede social, estava lá: ver Marte. Ia estar pertinho, no meio do 

céu, no meio da noite. Bem, se eu estivesse no meio do quintal dava prá ver. Claro que eu 

podia só ir lá fora, olhar prá cima e pronto, Marte estaria registrado em mim. Mas eu quis 

fotografar prá postar e dizer prá todo mundo: Vejam, eu vi Marte! Merda de ego. E aí 

começou: um edredron prá me deitar na grama? Hum.... todos limpos. Grama com 

Malathion da equipe da dengue que entrou aqui com um canhão de veneno. Um 

lençolzinho, mais fácil de lavar? E se tiver caramujos na grama? Não ia gostar de um "crec"

nas costas e uma meleca no lençol. Cadeira... melhor cadeira. Não dou conta de virar o 

pescoço prá cima por mais de um minuto. E outra cadeira no colo, prá servir de tripé. 

Marte é longe... Difícil é respirar, pois a cadeira de cima respira junto, a máquina vai no 

embalo, Marte treme, a foto desfoca, a cadeira cai, caio eu na grama sob Marte. E então 

me pego assim pensando em todo sistema: Marte, eu, Terra, terra, grama, universo. E me 

esbaldo na relatividade. Somos todos átomos. Somos todos grama. Somos todos Marte. 

Somos todos caramujos. É tudo uma coisa só.

Tereza





Hoje tem festa de aniversário de uma amiga na rede social e minha conexão sumiu. Festa na rede é legal: sem custos, sem lixo, sem ressaca e sem presentes caros: só fotos e textos. Falei das nove ao meio dia com a operadora. Desenhei um peixinho cada vez que ouvi “um momento, por favor”. Disse nome e CPF nove vezes, rabiscando bolinhas. Tudo o que consegui foram doze protocolos, uma obra-prima com quarenta e oito peixes e a promessa de que tudo se resolverá em cinco dias úteis. Mas, só prá compartilhar a irritação, decidi chamar todas as atendentes pelo nome da primeira: Tereza. Depois dela, todas eram.
- Senhora, meu nome é Camila.
- Desculpa, Tereza, tenho dificuldade em memorizar nomes...
- Senhora, meu nome é Fabio.
- Perdão, Tereza, fale mais alto, não escuto bem. Sabe... a idade...
Duas Tereza desligaram bem nervosas.
Três semanas iguais: quinta-feira sem conexão. Seria um Plano Diabólico da operadora para eu aderir ao Plano Plus Super Diabólico que inclui internet às quintas? Mas perco total a paciência, decido ficar para sempre desconectada, desisto e desligo. Penso no meu neto vindo almoçar, nos legumes na pia, nas cachorras me olhando e dizendo “pulgas!” e no computador aberto gritando “a revista!” Penso também na aniversariante e no presente que não vai à festa: a foto de trinta anos atrás, num restaurante horroroso nessa mesma data. Tinha um bolinho miúdo e poucas velinhas. A foto até que está bem restaurada, mas a mancha de mofo na minha cabeça agora parece um chapéu etrusco.
Deletados festa e presente, resta o tradicional parabéns por telefone, já que esse ainda funciona. Aliás, toca. Meu neto, será?
- Oi, vó! Reconecta os cabos do modem. Tira e coloca de novo!
- Você instalou câmeras na minha casa? Eu não pretendo sorrir!
- Vovó querida, esquece a operadora e o sorriso. Reconecta os cabos. Você consegue, Flipper. Vai ganhar sardinhas!!
- Dá para me explicar o que está acontecendo, caro Sherlock?
- Elementar... juntei dois fatos: seu telefone ocupado desde cedo e hoje é quinta. Ó: na quarta-feira a faxineira nova incorpora a Fúria do Aspirador e desconecta tudo o que encontra pela frente. Você chega do Yoga super zen e nem liga o computador. Quinta sua internet não funciona e você se atraca a manhã toda com a operadora. Daí você lembra de mim, do almoço, desliga e eu chego. Enquanto espero você criar seus pratos naturebas, ligo o computador, reconecto o modem e pronto, normal. Você acha que a operadora consertou. Toda quinta é assim. Só que hoje eu não vou.
- Pode ser. Mas, raios, porque você não me contou isso antes?
- Porque você me tira do computador, me arrasta prá mesa, eu tento explicar do modem, você diz que no almoço não se fala em problemas e ponto final. Aí ficamos brincando de saber de onde vem cada alimento, curtindo as cores dos legumes e eu esqueço as conexões. Crianças esquecem com facilidade, vovó.
- E por que você não veio hoje?
- Minha mãe acordou pensando que era quarta, me jogou embaixo do chuveiro, disse para eu lavar as orelhas e esperar a babá. Eu tentei avisar que era quinta, mas ela saiu feito um raio para uma reunião bem longe, que deve ter sido ...ontem. Como você estava incomunicável, liguei para a empresa de babás e pedi uma. Já está aqui comigo. Estou tentando dizer isso prá minha mãe cada vez que ela liga, mas ela diz que é prá eu ficar calmo, sentado, quietinho, até ela chegar. E nem me deixa falar! Caramba, por que vocês nunca me escutam?