Mudamos de casa ontem, as
cachorras, as minhocas, o saci e eu. É isso, eu tenho um saci e minhocas.
Alguma coisa contra? Se eu tivesse
filmado e postado essa noite na casa nova, ia bombar. Bem que eu quis organizar a mudança sozinha,
mas minha filha me enfiou goela abaixo uma empresa especializada e deu no que
deu: sabonetes na geladeira, controle remoto no freezer, maquiagem no pote de
ração e uma noite que ficará na história como a noite do “cadê”. E por falar em
ração, cadê ela?
- Cachorras, abanem os rabinhos!
Hoje vamos de pizza! Isso se tiver pizzaria aqui por perto e eu descobrir o
telefone. Sair de casa como? Cadê as chaves?
Ontem fui dormir super cedo prá organizar
tudo hoje durante o dia. Como as cachorras saudavam cada novo som com felizes
latidos, antes de um despejo sumário pela vizinhança, achei melhor dormir com
elas no tapete do escritório.
O telefone me acordou uns dez
minutos depois de ter fechado os olhos. Não achei o interruptor, pisei num bibelô
que devo ter derrubado quando puxei as cobertas, cortei o dedão do pé e quando
achei o telefone, tinha parado de tocar. A caixinha de curativos só achei
depois de procurar duas horas, quando fui tomar um suco: na gaveta de verduras
atrás dos sabonetes. Nessas duas horas achei muitas outras coisas, pois só
encontramos uma coisa quando procuramos outra, não é?
Mas, enfim, o que eu queria não
era mudar? E então tudo que me rodeava mudou junto. E agora, o telefone
tocando, raios, mas cadê ele? Rarrá, achei!
Ela de novo. Quem mais me ligaria
antes das oito da manhã?
- Estou no chuveiro! Depois eu ligo! - atendo, resmungo e me viro no tapete.
- Mamãe, esse telefone é fixo e
está no escritório. Ou será que você instalou uma ducha na estante?
- Vou anotar essa ideia, assim que achar uma
caneta. Mas o que você quer antes das oito?
Vingança por todas as vezes que tirei você da cama?
- Saber como está a casa nova, claro!
O que mais poderia ser? Ontem você não atendeu.
- Brinquei de caça ao tesouro a noite toda.
Por tesouro entenda: curativo, tesoura, livro, chaves, sabonete... O saci não
deu trégua.
- Mãe, curativo prá que? E tesoura?
E esse saci? Você pirou?
- Fiz um cortinho no dedão do pé. A tesoura, que
eu não achei ainda, é para eu cortar os muitos apegos que ainda me prendem à
casa antiga. Mudar é bom, mas envolve rompimentos, cortes, perdas, saudades....
E o saci é o mesmo, aquele das histórias
que eu te contava quando você era pequena, que vive escondendo tudo, inclusive
ele mesmo. Vou ignorar a quarta pergunta.
- Mãe, dá prá falar sério uma vez
na vida? Quero saber de coisas reais,
como a água da casa, energia elétrica, enfim, se tudo funciona. Essa casa não é
nova! E você me fala de apegos... sacis...
- Coisas reais? Vamos lá... Você sabe de onde
vem sua água? A daqui eu já sei. É um blended
de vários rios, inclusive uns de Minas Gerais! Juntam todos em canos, passam pela Serra da
Cantareira, tratam, e pronto, está aqui. Caso um terremoto destrua a Cantareira,
tenho uma reserva para quinze dias. Os carregadores e a geladeira estão
plugadas em milhares de quilômetros de linhas de transmissão, muitas usinas, florestas
inundadas e maracutaias em licitações. E meu lixo vai ser exportado prá outra
cidade já que em São Paulo não tem mais lugar para um cisco. Os recicláveis vão
para uma cooperativa e os restos de alimentos vão para as minhocas. Respostas
certas? Posso desligar? Quero dormir até meio dia. Paguei trinta anos dessa
fraude chamada Previdência prá isso.
- Santa Benedita! Minhocas! Espera...
aquelas caixinhas que você sempre tem na área de serviço de onde tira aquele
adubo estão cheias de mi-nho-cas? Cruzes! Porque você nunca me disse isso?
- Você nunca perguntou! E elas
são ótimas! Nunca ficam fora da casinha,
transformam as sobras de comida em húmus, sem cheiro e sem barulho, e não me
telefonam antes das oito! Porque você acha que as verdurinhas que levo prá você
são tão bonitas? Húmus, bebê. Nunca prestou atenção na
etiquetinha que diz: made by earthworms?
-. Earthworms... meu deus...minhocas!
Não me toquei. Mas porque em inglês? Porque não em português?
- Oras... no mundo do delete, layout, word, backup, download...
porque não earthworms? Não é chique? Ninguém
torce o nariz para earthworms, querida,
nem você! Mas fique tranquila, você não
é a única que aceita tudo que tenha uma etiqueta em inglês. E agora, me deixe
dormir. Ligue terça ou quarta.
Com as costas pinicando no tapete
e duas cachorras enroscadas nos meus pés, me pergunto em que momento da vida
descartamos as nossas fantasias e ligamos a vida no piloto automático. Porque,
ao invés de tentar refazer o trajeto de uma tesoura perdida não posso
simplesmente dizer “foi o saci”? Porque não parece normal assistir ao milagre
dos ciclos da vida se renovando numa caixa com earthworms, digo, minhocas? Por
que complicamos coisas simples e convivemos com coisas complexas como a água da
torneira sem perceber a complexidade? Ela sequer perguntou a única coisa que
realmente deveria interessar...
O telefone de novo.
- Vó? Ouvi minha mãe falando com
você. Minhocas fazem terra com restinhos de lanche também?
- E uma terrinha muito boa! Daquela que hortelã
adora! Tomaremos chá gelado made by earthworms!
- Legal! Vou levar as cascas das
frutas prá elas! O saci gostou da casa nova? E você, está feliz?