31/01/2011

Você pode falar agora?

     
    Meu primeiro celular pesava um quilo. Ok, menos... mas era enorme! Tocava raramente, mas tinha um lado bom: era impossível perder aquilo na bolsa. Sinal em minha casa só pegava num cantinho da varanda e ainda assim se eu ficasse nas pontas dos pés absolutamente imóvel. Um só movimento e as enormes listras luminosas sumiam do visor e alô?  Eu tinha câimbras se o papo durava, pois não é fácil ficar pétrea como bailarina, segurando com uma das mãos o pilar da varanda e com outra um tijolo mudo.
   Quando a coisa tocava em público, que vergonha! Era como se minha privacidade ficasse pelada entre as pessoas e eu não ia além de sussurrar  “depois eu te ligo” e desligar constrangida, quase pedindo desculpas à platéia.
   Isso não faz tanto tempo assim.  Dez anos? Foi ontem. Na história da humanidade foi há um triz. (Adoro essa palavra “triz”...)
   Agora tenho um celular pequeno que se perde entre batons, canetas, presilhas, aspirinas e papeizinhos na bolsa, serve como telefone, tira fotos, faz contas e me acorda. Tem dois anos e é tão antigo que tenho medo de colocar em cima da mesa num restaurante e os garçons retirarem como resto. Não recebe e mails, não tem GPS, não toca música. Talvez até toque, vá saber... De GPS eu não preciso, pois sempre sei onde estou, mesmo que não queira. E isso também não faz a menor diferença  porque onde quer que eu esteja sou achada:  o pedreiro me acha no  chuveiro, o primo desempregado no meio da novela, o amigo deprimido no meio do almoço. Aliás, nessa de atender a coisa  almoçando, já  atendi o garfo. Verdade.
   Tudo bem,  não estou normal, mas estou me tratando. Não por causa do garfo, pois isso não foi grave, só foi ridículo. Fiz outras coisas ridículas também: deixei gente plantada na minha frente para atender quem estava longe e esqueci qual era o assunto quando desliguei, fiz a fila do caixa esperar enquanto atendia quem na verdade devia esperar, disse que podia falar quando nem queria ouvir.
   Mas o tratamento não envolve o ridículo. A coisa é mais séria. Preciso me livrar de um pesadelo recorrente chamado “obsolescência programada”. Não ter trocado meu celular nesses dois anos é sinal de que estou melhorzinha, acho.
   O pesadelo é assim: eu entro em uma loja e compro o mais moderno dos celulares, bilhões de funções, top dos tops. Quando eu saio da loja ele já está antigo. Volto, compro um mais moderno e quando eu saio da loja ele está obsoleto. Volto, compro outro e vou comprando, outro, outro. Centenas!
   Todos vão ficando antigos cada vez mais depressa. Começo a desconfiar que alguém está por trás disso, alguém que programa essa obsolescência. O último modelo não é o último modelo, é o penúltimo, e estou sendo enganada.    
   O pesadelo continua e vou juntando celulares, celulares, todos inúteis, com suas baterias cheias de venenos. Não sei o que fazer com eles, quero devolvê-los aos seus criadores e não há criadores. Tento muitos 0800, mas nenhum  têm a opção “socorro!”.
   Vão se amontoando, se juntam aos dos vizinhos, se esparramam pelas ruas,  pelas cidades e pelo mundo inteiro. Todos  tocam sem  parar, não  consigo atender. Chamadas perdidas. 
   Não dá mais tempo. Afundamos no lixo.
   Acordo.  Será que dá para dormir mais um pouco?  



Obsolescência programada é o nome dado a vida curta de um bem ou produto projetado de forma que sua durabilidade ou funcionamento se dê apenas por um período reduzido. A obsolescência programada faz parte de um fenômeno industrial e mercadológico surgido nos países capitalistas nas décadas de 1930 e 1940 conhecido como Descartalização. causando grandes danos ao meio ambiente e prejuízos aos consumidores em geral. Faz parte de uma estratégia de mercado que visa garantir um consumo constante através da insatisfação, de forma que os produtos que satisfazem as necessidades daqueles que os compram parem de funcionar tendo que ser obrigatoriamente substituídos de tempos em tempos por mais modernos.