22/11/2010

Erro 678

ilustração BLCKDMNDS


     Minha internet não conecta. Reinicio várias vezes e nada. Sensação de solidão num planeta deserto. Meus e mails de trabalho, meus spams, os PPS de auto-ajuda, meus vírus, os banklines, tudo...inacessível. Meu mundo caiu. A vontade é de tomar um tarja preta 20 mg, me enrolar nas cobertas e gravar na secretária:  -  Não deixe recado e nunca mais ligue.  Desisti. 
   - Mas, coragem! Ligue para o provedor! digo a mim mesma.
    Preparo um sanduíche, um suco, e sento-me decidida à frente do computador. Daqui não saio. Vamos lá, 0800!    
    “Esse número não existe” é a primeira coisa que escuto. Normal. Fico uma hora para conseguir o número certo e mais meia até chegar ao suporte técnico. Prestes a espumar sou atendida:
   - Bom dia! Meu nome é Henrique. Para sua segurança, esta ligação está sendo gravada e vou estar confirmando alguns dados. Por favor, anote o protocolo.
    O gerúndio desnecessário desperta meus piores instintos. Engulo o suco, mas o mau humor enrosca na garganta.
     Ele pergunta nome, CPF, RG, endereço e eu soletro as respostas lentamente, até a lenga lenga acabar.
   - Em que posso ajudá-la? 
   - Estou sem conexão.
   - O que está acontecendo?
   - Meu amor, acabei de dizer! 
   - Senhora, eu estou querendo saber  o que acontece quando a senhora tenta a conexão.
     Percebo que ele já está aflito e respondo com voz bem doce:
   - Meu anjo, erro 678 – o computador remoto não responde. Por favor, seja paciente, pois sou idosa. Tenho mais de 60 anos. Promete?   
   - Ok, senhora. A senhora está na frente do computador?
   - Não. Estou na frente da pia com um peixe numa mão, a faca em outra, e o telefone preso entre o ombro e o queixo. Minha bursite dói demais!
   - Para eu estar tentando resolver o problema é preciso que a senhora esteja na frente do computador.
   - Ok. Vou estar me transferindo para lá. Aguarde.
   Coloco a Marcha Fúnebre de Chopin no último volume e volto ao sanduíche.
   - Sr. Guilherme?
   - Meu nome é Henrique. A senhora está na frente do computador?
   - Sim.
   - Por favor, clique em Meu Computador.
   - Sr. Guilherme, já fiz isso e desabilitei as conexões existentes. Estou em Criar Nova Conexão, me sentindo uma hacker. Vamos? O maldito gato está na cozinha de olho no peixe.
   - OK.  No espaço em branco digite POP 3.
   - BOB? Como?  Acho que meu aparelho de surdez caiu quando segurei o telefone com o ombro. Vou estar me transferindo até a pia. Aguarde.
   Aumento novamente o som, como mais um pedaço do sanduba e retomo:
   - Sr. Fernando? Achei o aparelho!  Aproveitei para colocar a cabeça do peixe no freezer para preservar as células-tronco. Nunca se sabe, né? Vi na TV que os cientistas podem recriar animais extintos e acho que robalos estão no fim da espécie, pois só achei esse na feira. Onde a gente estava mesmo?
   - Senhora, quero que me diga o que está vendo na tela.
   - No desktop? Uma loira peladíssima!  Coisa do meu neto! No meu tempo....
   - Senhora, preciso que clique novamente em Meu Computador!
   - A loira vai gostar! Quer saber onde está o ícone?
   - Senhora, vamos continuar?
   - O peixe!  Solte o peixe, gato! grito. Senhor Gustavo, preciso salvar o peixe! Vou estar transferindo o senhor para minha amiga que veio almoçar. Ela fez até curso para a terceira idade, o senhor vai gostar dela. Aguarde só um minutinho! 
    Coloco Cauby Peixoto cantando Ronda, termino de comer o sanduíche e retomo com uma voz centenária:
   - Senhor Henrique? Sua internet não conecta? Esses provedores são todos horrorosos! Minha amiga já volta. Ela foi colocar o gato no forno, mas ele é muito arisco! O senhor também tem gato?

Posso ajudar?


ilustração Bia Porto
Entro na sala de espera branca do laboratório. Uma moça vestida  da mesma cor de tudo abre um sorriso também branco:
- Bom dia! Posso ajudar?
- Vim fazer um exame de sangue!
- Convênio ou particular?
- Convênio.
É impressão minha ou o sorriso diminuiu? Fico tentada a dizer - SUS!  para testar. 
Ela pega meus documentos, preenche uma montanha de papéis - que assino sem ler - e pede que a acompanhe por um corredor sem nenhuma bactéria. 
Outra moça quase igual abre outro sorriso igual. A chapinha  consolida a Constituição ao tornar todas as moças iguais.
- Por favor, a senhora pode pendurar sua bolsinha naquele ganchinho e aguardar um minutinho sentadinha ali?  
Desconfio que acabo de entrar no reino de  Liliput.  Não consigo, com meus 1,70 de altura e mais de 70 kg, me imaginar “sentadinha” e sei que o tal ganchinho vai despencar com o peso de  minha bolsa enorme.  Coloco a bolsa no chão e, enquanto espero, fico me perguntando quantos segundos teria um “minutinho”: 30?  40? Minutinho deve ser menor do que minuto, acho eu...
Por fim a  moça – ou seria outra? – entra com uma bandeja e uma seringa.  Faço uma careta.
- Não vai doer nadinha! É bem rapidinho! A senhora pode fechar a mãozinha assim? É só uma picadinha!  Prontinho! Agora a senhora põe o dedinho aqui e aperta para não ficar uma manchinha!
Saio dali diretamente para uma loja de shopping, sentindo-me  pateticamente pequena,  reduzida à imbelicidade. Fonte 8, minúscula.
 - Bom dia! Posso ajudar?
- Gostei daquela blusa branca da vitrine, a decotada. Tem G?
- Tem sim!
A blusa que ela me entrega não entraria  em uma criança de 12 anos.
- E GG, tem ?
A GG que ela traz é um centímetro maior. Modelagem Made in China, acho, feita para pequenas e delicadas chinesas sem silicone.        
- Tem Extra G ? Ou Extra GG? 
- Sinto muito, Extra G não vou ter.
- E hoje, você tem?
Ela me olha como se  eu fosse  um chapéu de sumério, seja lá o que for isso. Explico com toda paciência:
- “Não vou ter” é futuro. O futuro é uma coisa que ainda vai acontecer,  se é que vai. A Terra está esquentando tanto que o futuro passou a ser apenas uma hipótese. Aqui e agora estamos no presente, no hoje.  Você tem ou não tem o Extra G?   
-  Não vou ter. O G é o maior que vou ter. 
-  Mas o G você não vai ter,  já tem.
- É.  Só vou ter esse mesmo.
- Ok. Esquece o tempo verbal, o futuro hipotético, o aquecimento global,  os sumérios  e mostre algo que me sirva!
Ela pesca da prateleira  uma coisa parecida com uma burca cor de band aid.
- Dessa tem roxa? Ou vermelha? Ou laranja cítrica? É que não gosto de tom empadinha!
- Não. Só vou ter essa mesmo.
Saio dali me sentindo enorme, giganta, um horrível ser além do Extra G. 
Vejo a placa de academia e, apesar do pavor que tenho à ginástica, entro corajosamente.
- Bom dia! Posso ajudar? 
- Preciso caber num tamanho GG  chinês.    
- ?
- Preciso ficar menor, emagrecer, sumir!
- Ah... Vou preencher uma fichinha da senhora. Pode aguardar sentadinha ali um minutinho?