07/05/2014

Made by earthworms



Mudamos de casa ontem, as cachorras, as minhocas, o saci e eu. É isso, eu tenho um saci e minhocas. Alguma coisa contra?  Se eu tivesse filmado e postado essa noite na casa nova, ia bombar.  Bem que eu quis organizar a mudança sozinha, mas minha filha me enfiou goela abaixo uma empresa especializada e deu no que deu: sabonetes na geladeira, controle remoto no freezer, maquiagem no pote de ração e uma noite que ficará na história como a noite do “cadê”. E por falar em ração, cadê ela?  
- Cachorras, abanem os rabinhos! Hoje vamos de pizza! Isso se tiver pizzaria aqui por perto e eu descobrir o telefone. Sair de casa como? Cadê as chaves?
Ontem fui dormir super cedo prá organizar tudo hoje durante o dia. Como as cachorras saudavam cada novo som com felizes latidos, antes de um despejo sumário pela vizinhança, achei melhor dormir com elas no tapete do escritório.
O telefone me acordou uns dez minutos depois de ter fechado os olhos. Não achei o interruptor, pisei num bibelô que devo ter derrubado quando puxei as cobertas, cortei o dedão do pé e quando achei o telefone, tinha parado de tocar. A caixinha de curativos só achei depois de procurar duas horas, quando fui tomar um suco: na gaveta de verduras atrás dos sabonetes. Nessas duas horas achei muitas outras coisas, pois só encontramos uma coisa quando procuramos outra, não é?
Mas, enfim, o que eu queria não era mudar? E então tudo que me rodeava mudou junto. E agora, o telefone tocando, raios, mas cadê ele?  Rarrá, achei!
Ela de novo. Quem mais me ligaria antes das oito da manhã?
-  Estou no chuveiro! Depois eu ligo! -  atendo, resmungo e me viro no tapete.
- Mamãe, esse telefone é fixo e está no escritório. Ou será que você instalou uma ducha na estante?
-  Vou anotar essa ideia, assim que achar uma caneta.  Mas o que você quer antes das oito? Vingança por todas as vezes que tirei você da cama? 
- Saber como está a casa nova, claro! O que mais poderia ser? Ontem você não atendeu.
 - Brinquei de caça ao tesouro a noite toda. Por tesouro entenda: curativo, tesoura, livro, chaves, sabonete... O saci não deu trégua.
- Mãe, curativo prá que? E tesoura? E esse saci? Você pirou?
-  Fiz um cortinho no dedão do pé. A tesoura, que eu não achei ainda, é para eu cortar os muitos apegos que ainda me prendem à casa antiga. Mudar é bom, mas envolve rompimentos, cortes, perdas, saudades....  E o saci é o mesmo, aquele das histórias que eu te contava quando você era pequena, que vive escondendo tudo, inclusive ele mesmo. Vou ignorar a quarta pergunta.
- Mãe, dá prá falar sério uma vez na vida?  Quero saber de coisas reais, como a água da casa, energia elétrica, enfim, se tudo funciona. Essa casa não é nova! E você me fala de apegos... sacis... 
-  Coisas reais? Vamos lá... Você sabe de onde vem sua água? A daqui eu já sei. É um blended de vários rios, inclusive uns de Minas Gerais!  Juntam todos em canos, passam pela Serra da Cantareira, tratam, e pronto, está aqui. Caso um terremoto destrua a Cantareira, tenho uma reserva para quinze dias. Os carregadores e a geladeira estão plugadas em milhares de quilômetros de linhas de transmissão, muitas usinas, florestas inundadas e maracutaias em licitações. E meu lixo vai ser exportado prá outra cidade já que em São Paulo não tem mais lugar para um cisco. Os recicláveis vão para uma cooperativa e os restos de alimentos vão para as minhocas. Respostas certas? Posso desligar? Quero dormir até meio dia. Paguei trinta anos dessa fraude chamada Previdência prá isso.
- Santa Benedita! Minhocas! Espera... aquelas caixinhas que você sempre tem na área de serviço de onde tira aquele adubo estão cheias de mi-nho-cas? Cruzes! Porque você nunca me disse isso?
- Você nunca perguntou! E elas são ótimas!  Nunca ficam fora da casinha, transformam as sobras de comida em húmus, sem cheiro e sem barulho, e não me telefonam antes das oito! Porque você acha que as verdurinhas que levo prá você são tão bonitas?  Húmus, bebê. Nunca prestou atenção na etiquetinha que diz:  made by earthworms?
-. Earthworms... meu deus...minhocas! Não me toquei. Mas porque em inglês? Porque não em português?
- Oras... no mundo do delete, layout, word, backup, download... porque não earthworms? Não é chique? Ninguém torce o nariz para earthworms, querida, nem você!  Mas fique tranquila, você não é a única que aceita tudo que tenha uma etiqueta em inglês. E agora, me deixe dormir. Ligue terça ou quarta.
Com as costas pinicando no tapete e duas cachorras enroscadas nos meus pés, me pergunto em que momento da vida descartamos as nossas fantasias e ligamos a vida no piloto automático. Porque, ao invés de tentar refazer o trajeto de uma tesoura perdida não posso simplesmente dizer “foi o saci”? Porque não parece normal assistir ao milagre dos ciclos da vida se renovando numa caixa com earthworms, digo, minhocas? Por que complicamos coisas simples e convivemos com coisas complexas como a água da torneira sem perceber a complexidade? Ela sequer perguntou a única coisa que realmente deveria interessar... 
O telefone de novo.
- Vó? Ouvi minha mãe falando com você. Minhocas fazem terra com restinhos de lanche também?
-  E uma terrinha muito boa! Daquela que hortelã adora! Tomaremos chá gelado made by  earthworms!
- Legal! Vou levar as cascas das frutas prá elas! O saci gostou da casa nova? E você, está feliz?

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